A imagem do Alentejo sempre esteve associada à brancura das suas casas -senhoriais ou modestas- que se destacam (um pouco, ainda hoje) na paisagem verde escura dos sobreirais e no ouro vivo das searas. Abro aqui um parêntese para assinalar a situação algo precária dos nossos montados, que já não têm a pujança que tiveram noutros tempos (embora a cortiça continue a ser um dos produtos mais emblemáticos das nossas exportações), e para fazer notar a raridade dos trigais, que outrora ocuparam o lugar de todos esses terrenos abandonados que agora por cá se vêem.
Enfim, políticas dos senhoritos de Lisboa, para quem «valores mais altos se alevantam» e que, há muito, votaram ao abandono todo o interior do nosso país
Mas voltando ao tema que nos propusemos abordar, para reatar a nossa colaboração com o blog «Castelo Cernado», que o incansável Dani teima (muito meritoriamente) em manter activo, queremos lembrar que a cal também já não é aquilo que foi -durante séculos- para as gentes da Comenda. O dito produto foi, pouco a pouco e ao longo destas últimas décadas, cedendo lugar aos marmorites, à azulejaria e, finalmente, às tintas sintéticas, que duram muito mais tempo e evitam, assim, a necessidade repetitiva de uma tarefa penível, que era importante fazer duas vezes por ano. Sim, aqui na nossa terra, essa operação de caiação era, geralmente, executada pela Páscoa (por volta dos meses de Março/Abril) e antes das grandes festas que por cá já se fizeram em honra de Nossa Senhora das Necessidades e para regalo do povo do Castelo e das povoações circunvizinhas.
Segundo nos disse uma senhora da terra -que vai completar 88 anos de idade no início do ano vindouro- os comerciantes de cal, quase todos eles provenientes da Escusa, apareciam por cá com o então indispensável produto em vésperas das já referidas ocasiões. A cal era transportada em carroças puxadas por muares e apresentava-se sob a forma de grandes pedaços, que eram reduzidos (no acto da venda) em bocados mais pequenos e vendidos ao quilo. Esses pedaços de cal eram, de seguida, mergulhados numa talha com água, na qual se operava uma reacção química; na final da qual o produto já liqueficado era entregue aos caiadores ou às caiadeiras (estas mais disponíveis, aliás, para executar esse género de trabalho), que espalhavam o branqueador natural por paredes e muros. O resultado dessa tarefa (bem ou mal feita) só podia apreciar-se depois da cal ter secado completamente e dos raios do sol incidirem sobre as superfícies trabalhadas. Regra geral, as paredes novas eram mais difíceis de branquear, sendo necessário recorrer a várias camadas de cal, com intervalos entre a primeira aplicação e as seguintes. Parece (e nós acreditamos que sim) que o material utilizado na construção das paredes e a sua textura (mais ou menos absorvente) também requeria cuidados especiais aos caiadores, que sabiam dosear o produto em função das particularidades de cada um desses suportes.
A verdade é que, depois das operações de caiação, as casas, montes, aldeias, vilas e cidades do nosso vasto Alentejo e de outras regiões do sul de Portugal se apresentavam aos olhos dos autóctones e dos visitantes muito mais atraentes, muito mais bonitos. Parece (é, pelo menos, o que dizem certos estudiosos) que a tradição de caiar as casas no Alentejo e no Algarve (para já não referir outras regiões da Europa meridional) nos foi legada pelos povos arabizados do norte de África, que por cá se mantiveram, como é sabido, durante alguns séculos e nos inculcaram hábitos que perduram. Tanto na nossa terra, como na deles, onde a tradição da caiação não só servia para embelezar, mas também para proteger as casas e os seus habitantes dos raios do sol, do calor de verões escaldantes.
Porque a cal tem essa virtude, a de proteger do calor, mas também (depois de seca) da humidade. A cal é, no dizer dos conhecedores, antibacteriana, antifungos, qualidades de que não dispõem as tintas plásticas modernas, que, como todos nós já tivemos a ocasião de observar, não evitam bolores e outras agressões provocadas pelo tempo frio e pelas chuvadas invernais. A cal é, em suma, um são e bom produto, precipitadamente abandonado em benefício de modernices com menos qualidade e que (é o caso de certos revestimentos sólidos) desvirtuam a nossa paisagem urbana. A solução aquosa usada (outrora com mais frequência, como já foi dito) nas paredes das casas da nossa terra é o hidróxido de cálcio e provém do calcário (ou pedra de cal), matéria relativamente abundante na natureza. A cal tem variadíssimas aplicações na indústria e na agricultura, sendo esta, a que nos referimos neste pequeno e pobre texto, apenas uma delas. Na construção civil entrava, por exemplo, na constituição de uma argamassa com a qual também se levantaram muitas paredes na nossa região.
Antes de terminar, queremos dizer que este texto foi sugerido (embora nada tenha a ver com o dito) por um artigo muito interessante, da autoria de Gisela de Sá, recentemente publicado no «Jornal de Nisa»; que se intitula «Caiar : um ofício, uma arte, um ritual !» e que presta homenagem a duas caiadeiras de Alpalhão.
Manuel Monteiro Silva
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