quinta-feira, 23 de abril de 2009

OS ENCHIDOS TRADICIONAIS DA COMENDA






Voltamos ás tradições antigas com mais um artigo do nosso colaborador Manuel Silva.



OS ENCHIDOS DA COMENDA : UMA PRECIOSIDADE QUE DESAPARECEU


A Comenda já foi terra de alguns dos melhores enchidos produzidos no distrito de Portalegre, quiçá no nosso país. Com características gustativas muito próprias, os nossos enchidos –todos de fabrico artesanal- ganharam fama não só na nossa região, mas também em Lisboa e nalgumas cidades e vilas dos arrabaldes da capital. Onde, infelizmente, eram comercializados com a designação vaga e algo enganadora de «carnes da região de Portalegre». E isto é dito, naturalmente, sem desprimor para os produtos confeccionados na cidade de Régio, cuja reputação, neste campo das carnes embutidas, está feita e confirmada.

Convém dizer que os porcos produzidos na nossa região (e aqui estou-me a referir exclusivamente à Comenda e lugares vizinhos, como o Vale da Feiteira e a Ferraria) eram alimentados com produtos tão naturais quanto a lande dos nossos montados, as batatas (geralmente servidas aos animais depois de prévia cozedura), as abóboras, as couves e as chamadas lavagens, que incluíam sempre (ou quase) cereais e afins. De modo que a carne dos suínos criados pela nossa gente ganhava, ao longo do processo de engorda, uma consistência e um sabor francamente incomparáveis.

Os produtores de enchidos da Comenda eram, sobretudo, os comerciantes locais de mercearia, um ou dois salsicheiros que por cá havia e os particulares, que, por vezes, vendiam a esses negociantes os excedentes da sua própria produção. Produção que compreendia, essencialmente, chouriços (mouros ou de carne), linguiças, paios (os famosos lombos guitados) e painhos, cacholeiras, morcelas de assar, morcelas de cozer (estas muitas vezes ensacadas nos próprios buchos dos porcos) e farinheiras.

Não me vou atardar nas técnicas de confecção dessas nossas antigas preciosidades gastronómicas. Até porque, confesso, nada percebo do assunto. Embora tenha assistido, várias vezes, à preparação e ao enchimento desses produtos por várias senhoras da Comenda, que demonstravam, então, um saber e uma agilidade fora do comum. Tal espectáculo foi-me proporcionado em casa de tios, que possuíam na Comenda um negócio de mercearia e uma modesta salsicharia. Sei é que a carne e demais ingredientes (sangue, sal, pimentão, alho, especiarias, etc) eram previamente preparados e separados em função da sua futura utilização.

O chouriço de carne, por exemplo, era confeccionado com alguma da carne mais nobre do animal esquartejado e com muito pouca gordura. Temperado a preceito, segundo as regras da casa e o saber ancestral daquelas que o fabricavam, o chouriço passava depois para o lugar designado no fumeiro, onde permanecia o tempo necessário até estar nas condições ideais para ser colocado no mercado e degustado. Já o chouriço mouro era, basicamente, mais gordo. Lembro-me perfeitamente da sua inigualável sapidez, quando enriquecia as nossas consistentes sopas regionais e o nosso famoso cozido à portuguesa. Nas morcelas, aromatizadas com cominhos, havia que distinguir a de cozer, que muitas vezes enchia o característico bucho (daí o povo também a designar por esse nome, bucho) e a de assar, esta ensacada em tripa fina, de secção idêntica (ou quase) à do chouriço. Esta última e a cacholeira -obra-prima dos nossos desaparecidos charcuteiros- constituíam o pitéu ideal para petiscar a meio da tarde, acompanhadas de copos de vinho de produção local e de fatias do nosso afamado pão caseiro. Nada melhor ! –E já agora, e para finalizar esta lista de produtos que a Comenda já produziu, quero referir o nosso delicioso paio ou lombo enguitado. E referir que, nos idos de 50 (do passado século, obviamente), esta delícia era quase exclusivamente reservada aos ricos da nossa terra. Por causa do preço muito elevado com que ela (a tal delícia) era colocada no comércio. Esses preços pouco populares justificavam-se pelo facto de tal enchido ser confeccionado com o melhor lombo dos suínos e, também, porque o seu enguitamento obrigava as salsicheiras a um trabalho mais cuidado e mais demorado. O gosto do lombo enguitado da Comenda era único, divinal. E capaz de ombrear (senão superar) em qualidade com o melhor que alguma vez se fez, neste país (e não só), em matéria de enchidos.

A propósito da acima referida fama que os nossos enchidos chegaram a ter na capital e terras da chamada cintura industrial de Lisboa, quero ainda dizer o seguinte : o pai do escrevinhador destas linhas fixou-se no Barreiro em finais dos anos 40 do século passado. Aí trabalhou nas Oficinas Gerais dos Caminhos-de-Ferro Portugueses perto de uma década. O ordenado que recebia no final de cada mês era miserável. E ele resolvia o problema vital da sobrevivência, socorrendo-se desta artimanha : como tinha um passe que lhe permitia viajar de borla nos comboios da CP, vinha todos os sábados à Comenda com dois grandes cabazes de verga, que aqui carregava, essencialmente, com enchidos da terra. Produto que depois vendia a uma clientela certa de Lisboa, do Barreiro ou de Alhos Vedros. O famoso Café Gelo (na capital) era um dos clientes certos de meu pai. Visto a clientela selecta desse estabelecimento, por ali se quedavam os tais lombos e os melhores chouriços. E no Barreiro eram clientes do meu progenitor a Cooperativa dos Corticeiros, o Café Lá Vai (propriedade de um alegretense) e, entre outras mais, a conhecida Casa Lagarto. Isto passava-se quando eu tinha 6/7 anos de idade. E sei-o graças aos relatos verbais que o meu falecido pai deixou. A fama gerada pelas nossas carnes embutidas era de tal ordem, que os estabelecimentos citados faziam dessa exclusividade uma das suas apostas comerciais.

Creio que o essencial sobre os enchidos da Comenda está dito. Resta-me lamentar que essa pequena indústria (de características caseiras) não tenha perdurado até aos nossos dias. Porque poderia ter valorizado mais a nossa terra, nestes tempos em que a qualidade daquilo que se come se tornou uma mais valia para quem produz e vende o melhor.

Quero dizer ainda que, apesar de tudo, Portalegre continua a manter a qualidade e a fama dos seus enchidos. Esses produtos estão hoje protegidos pela lei. Só podem beneficiar da designação ‘Enchidos de Portalegre’ aqueles que forem confeccionados com carne de animais de estirpe regional (raça alentejana) e fabricados nos limites dos concelhos do nosso distrito. Os comendenses estão, pois, contemplados com essa benfeitoria.Não haverá por aí alguém com espírito de iniciativa (e também com algum dinheiro) que queira recuperar as receitas do passado e dar continuidade a esta tão interessante tradição ? –A pergunta fica feita.



Manuel Monteiro Silva

5 comentários:

  1. Existe hoje na Freguesia da Comenda mais propriamente no Vale da Feiteira um Empresário agrícola que tem um talho no Mercado, e que tem uma pequena Exploração de porcos Alentejanos, seu nome é Atílio Moura Domingos, e mantém a feitura dos enchidos manualmente, como antigamente se fazia, como atestam as fotos.

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  2. Obrigado Dani pela atenção e pelo comentário. Foi realmente um imperdoável lapso não ter citado o Sr. Atílio, que continua a fazer (bons) enchidos na nossa freguesia. Mil desculpas. (mmsilva).

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  3. Os enchidos da Comenda "ganharam fama não só na região, mas também em Lisboa e nalgumas cidades e vilas dos arrebaldes da capital".
    Orgulho!
    Orgulho eu sinto. Por vosso povo, essa gente vossa...

    "Eram comercializados com a designação vaga e algo enganadora de "carnes da região de Portalegre".
    Essa não... Essa eu não conhecia.
    O roubo do registo de propriedade indústrial e produto(s) de origem, os direitos de autoria e produção, nunca tinha entrado e estado presente, por desconhecimento, diga-se de passagem, nos meus pequenos estudos sobre vossa gente e povo.
    Não deixa de ser, a informação proferida e citada, uma importância revelante. São afirmações destas, juntas a outras interpretações, que no vosso dia-a-dia, no vosso presente, derrubam certos estérotipos enraizados no vosso imaginário colectivo e vos leva a olhar o futuro, o tempo que há-de vir, outra forma e prespectiva diferente.
    Meu povo. Minha boa gente. Que seja este o meu sentimento.

    "Os produtores de enchidos da Comenda eram, sobretudo, os comerciantes locais de mercearia, um ou dois salsicheiros que por cá havia e os particulares, que, por vezes, vendiam a esses nogociantes os excedentes da própria produção".
    De acordo. Estou em sintonia.
    Os particulares, geralmente criavam um bácoro, podia ser dois, nos seus quintais ou em hortas suas ou arrendadas. Quando eram dois, um ficava para casa. O que se vendia, muitas vezes, era para pagar o "fiado" que estava na mercearia.
    `
    É uma tradição que morreu. Era todo um ritual. Era todo um ritual "a matança do porco. Não me vou alongar.
    Os donos, os donos do referido animal, para o matarem, procuravam duas pessoas, homens, para o segurarem. Nesse processo, não entrando numa dissertação descritiva, se procurava uma mulher, geralmente uma que trabalhava nos produtores de enchidos da Comenda, para que o produto final fosse um êxito.
    Uma coisa acontecia. Geralmente era noite. O dono da casa, o dono do animal, levava um bocadinho da carne para a taverna, para se fazer um petisco e ser comido na referida taberna. Os convidados, os seus convidas, os intervinientes, eram os homens que segurarem o referido porco e alguns amigos.

    Não deixa de ser, o que se fazia em casa, "as migas de miolos de porco" uma iguaria. De comer e chorar por mais.

    Para terminar, sem me alongar, (ainda estou a tentar finalizar, "fontes na Comenda) que "a Comenda já foi terra de alguns dos melhores enchidos".
    "A carne dos suínos criados pela nossa gente ganhava, ao longo do processo de engorda, uma consistência e um sabor francamente incomparáveis". Não que os produtos, os produtos na sua referida alimentação não lhe dessem essa característica, essa qualidade, essa particularidade única.
    Julgo e é do meu entendimento, na confeccão dos referidos enchidos,era o alho, era o alho no final do processo produtivo, da referida indústria, ele ia acentuar todas essas qualidades e sabor.

    Para terminar e concluir uma nota final.
    Não sei se o toponímio Lameiras, tem alguma coisa a ver com o suíno e uma vara.
    Sei e tenho a certeza, na referida propriedade, ainda lá estão duas malhadas "pocilgas", dispersas e distantes entre si, de largas dimensões.....
    Luis Vieira

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  4. "Não sei se o toponímio Lameiras, tem alguma coisa a ver com o suíno e uma vara.
    O termo, "terreno lamacento", desconheço, desconheço se não parte daí, da existência de um terreno húmido onde cresce erva e a porcaria existente, a manada de gado suíno, sua relação com o solo, a causa e o efeito.

    Sei e tenho a certeza, na referida propriedade, ainda lá estão duas malhadas (pocilgas), dispersas e distantes entre si, de largas dimensões.....

    Está, continuando o apontamento anterior, nas Lameiras, um poço, uma casinha e um curral.
    É junto, é muito perto da estrada, a via que vos liga a Monte da Pedra, a descer, como que a descer para o "amado" Rio Sôr.
    No curral, no referido, ainda se encontra em bom estado de conservação, uma parte com muitas pocilgas, essas, essas de menor dimensão e muito mais pequenas.

    É o presente.
    A "História", ela parece que se repete.

    No Polvorão, na herdade do Polvorão, existe hoje uma exploração de suínos e sua respectiva engorda.
    O animal, o referido animal, a sua produção, ele e ela, tiveram a coragem de regressar a essa "mui" nobre terra e a vosso espaço geográfico.

    Com alguma tristeza, (julgo não estar errado), que, quando o porco parte, vai de viagem para outras paragens e lugar distante, ele se esqueceu do nome da sua origem e local de nascimento...
    Que a estar correcta, que a estar correcto o que escrevo, a História, essa, a vossa, ela se continua a repetir de duas maneiras, como se não fosse possível não ter mudado..."

    O Luis

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  5. " No Polvorão, na herdade do Polvorão, existe hoje uma exploração de suínos e sua respectiva engorda ", se escrevia, que se escrevia em 26 de Abril de 2009, o orgulho o alguém o sentia...

    Era com alguma tristeza, tristeza parece que algo lhe batia, errado, a certeza quase ele escrevia, que, quando o porco partia, que ia de viagem, outras paragens e lugar distante, a tiragem ele fazia, o dito, o dito parece que se esquecia, esquecia o nome da sua origem e local de nascimento...

    Hoje, que passando, olhando aquela cidadela, aquela exploração de suínos e sua respectiva engorda, deserta está ela, aquele mundo e labuta...

    Seus habitantes, aquilo que lá se movia, a vida, a vida parece que findou, que não sei, não sei se seus habitantes foram de férias, se foram de férias e voltam, ou, ou apenas partiram para sempre e nunca mais voltam....

    O´LUIS

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