terça-feira, 10 de novembro de 2009
«A MINHA TERRA E OS USOS E COSTUMES DA SUA GENTE» (i)
Algumas linhas sobre o texto que se segue
«A Minha Terra e os Usos e Costumes da sua Gente» é uma evocação da Comenda e dos seus habitantes das décadas de 40/50 do século passado. É seu autor António Francisco da Silva (que faleceu no Castelo em 2007, com 83 anos incompletos), também conhecido cá na aldeia pelos apodos de António Miguel e de Francês, sendo este último justificado pelo facto de ter residido largos anos no estrangeiro. O texto em questão foi escrito no Barreiro (onde ele também morou), como trabalho obrigatório da disciplina de Língua Portuguesa no ano (que não nos foi possível determinar) em que o autor foi finalista do Curso Comercial, que tirou (no quadro do ensino nocturno) na escola técnica Alfredo da Silva daquela localidade. Devido à extensão deste texto, dividimo-lo em quatro partes, que serão sucessivamente publicadas no nosso blog.
«A MINHA TERRA E OS USOS E COSTUMES DA SUA GENTE» (i)
A minha terra é um castelo sem ameias. Castelo que nunca possuiu alcaide e a cujas portas nunca bateu o inimigo, mas castelo de muitos heróis. Falo de heróis, mas não daqueles que imortalizaram o seu nome na História dos povos quer matando o seu semelhante, quer conquistando a terra alheia. Não ! Os heróis da minha terra também conquistam e também matam, mas à terra só conquistam o pão de cada dia e é com ele que matam a fome a muitas almas.
A minha terra é uma pequena aldeia do Alto Alentejo de nome Castelo Cernado. Terra de agricultores, carvoeiros e tiradores de cortiça. Nestas duas últimas profissões são exímios e afamados entre os grandes fabricantes de carvão vegetal e os proprietários das enormes herdades de sobreiros do Alentejo.
A sua vida é quase nómada, pois passam parte do ano fora da terra natal. A azáfama começa logo em Janeiro. Ano novo, vida nova, como se costuma dizer. É nesse mês que os homens da minha terra começam a sair em grupos ou partidos, chefiados por capatazes competentes, para vários pontos do país, para procederem à limpeza de sobreiros e azinheiras. Trabalho difícil e perigoso em dias de chuva e tempestade. Árvores esguias e sem estabilidade de apoio, sacudidas pelo vento e pela chuva, oferecem uma queda mortal a estes pobres trabalhadores no momento em que eles menos o esperam.
Acabada a limpeza destas árvores, procedem ao descortiçamento das pernadas de sobreiro, juntam a lenha, enfornam-na e eles aí vêm de volta, para passarem a Páscoa na companhia da família. A demora é de pouco tempo, vinte a trinta dias, se tanto.
Depois são as tiradas de cortiça, em que eles vão ocupar parte do Verão. Trabalho para eles leve, trabalho em que o seu organismo afeito a tarefas duras e pesadas menos se ressente. Geralmente, as tiradas de cortiça têm o seu início pelos fins de Maio ou princípios de Junho, dependendo isso do grau de pluviosidade verificado durante a Primavera, porque esta estação tem grande influência na extracção da cortiça. Se choveu muito, o sobreiro toma muita seiva e a cortiça com facilidade se extrai. Se a Primavera foi seca, a cortiça está muito agarrada e, às vezes, vem junto a ela o entrecasco (que há-de ser futura cortiça), o que se torna bastante prejudicial ao sobreiro. É ferida que jamais terá cura.
A tirada de cortiça é, ao mesmo tempo, um espectáculo interessante e doloroso aos olhos de quem o contempla. Quem nunca viu uma tirada de cortiça não pode avaliar de perto as sensações espirituais que se experimentam perante tal quadro. Os tiradores de cortiça assentam arraiais ao ar livre, geralmente à sombra de frondosos sobreiros, dos quais extraiem alguns cortiços que dependuram dos mesmos com o auxílio de arames ou cordas, onde guardam os géneros alimentícios; que ficam, deste modo, fora do alcance de cães, gatos, ratos, formigas e demais bicharada. Depois fazem as camas no chão, sobre um feixe de feno ou em cima dos próprios sobreiros para não serem picados pelas melgas. Após estes arrumos, afiam convenientemente as ferramentas e aguardam a hora do início.
Chegou, enfim, o momento de começar. Uma voz, que se faz ouvir por toda a companha com a atitude de quem manda, grita : «rapazes vamos à vida, que a morte é descanço» ! Então, aqueles homens de aspecto rude, agrupados dois a dois, empunhando cada qual a sua machada faiscante em forma de meia lua, investem contra o tronco dos pobres sobreiros vibrando milhares de machadadas, que eles recebem sem um queixume e sem que uma única vá ferir o entrecasco da árvore. Golpes que só as mãos calosas e hábeis destes operários conseguem vibrar com tal perícia. Após alguns minutos, ouve-se o ronco surdo do desagregar de milhões de moléculas e começam a cair no chão algumas folhas de cortiça, deixando a descoberto o entrecasco que, ao fim de nove anos, será nova cortiça criada. É então que surge o doloroso espectáculo aos olhos de quem o contempla : são milhares de seres vegetais erguendo os braços seminus ao céu, como que a implorar do Criador a compaixão que os seus filhos não tiveram.
A cortiça é junta e empilhada em pontos estratégicos, para que possa ser transportada para as fábricas, onde é manipulada ou maquinofacturada, sendo depois exportada para o estrangeiro, onde é muito apreciada e tem várias aplicações. Esta exportação é das que mais contribui para o equilíbrio económico da nossa balança comercial.
(continua)
Manuel Monteiro silva
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