quarta-feira, 25 de novembro de 2009
«A MINHA TERRA E OS USOS E COSTUMES DA SUA GENTE» (III)
(…)
Após alguns dias de preparativos, os homens da minha terra saiem novamente para transformar em carvão a lenha cortada durante a primavera e o verão. Essa é de todas as tarefas executadas por estes bravos trabalhadores a mais dura e a de maior sacrifício. Esse trabalho é, geralmente, feito de empreitada e nunca vai além de sessenta a noventa dias. É onde ganham mais dinheiro, pois não há ali horas de começar ou de largar. É dar tudo por tudo, porque o salário é inversamente proporcional ao tempo. Como é árdua a vida de carvoeiro… Só os habitantes de pequenos povos rurais são dotados de resistência física para poderem suportar tal sacrifício. Apesar da magra alimentação que os nutre, são saldados pelo ar puro dos campos e pela vida sossegada da aldeia, onde o vício e o bulício das grandes cidades ainda não conseguiu chegar.
Os fornos de carvão são terrados e postos a arder. Em cada grupo há um companheiro que tem o nome de cozedor, porque é ele quem tem a responsabilidade da mecânica dos fornos, sendo a cozedura dos mesmos nada mais do que uma combustão lenta. Depois de terrados, os fornos são postos a arder. Desde então, necessitam de uma vigilância bastante assídua. O cozedor vai várias vezes, durante o dia e a noite, observar o seu andamento : apertar a terra de encontro ao carvão já cozido, para evitar as bolsas de ar entre o carvão ou a lenha e a terra (o que iria motivar uma combustão viva, de que resultaria, como produto, um montão de cinzas) ou puxar o lume mais aos quinais, à costa ou à cruzeta, conforme o seu conhecimento técnico o entender. Geralmente, estes desvios de fogo são feitos com furos abertos em determinados sítios, com o auxílio do cabo de uma enxada. O bom resultado desta operação é uma função dependente da competência do cozedor, da qualidade da terra, do grau de humidade da mesma, das condições atmosféricas, etc.
Depois dos fornos cozidos, procede-se à alagação dos mesmos, operação que consiste em lhe derrubar as terras para os privar do contacto directo com o ar. Segue-se o empoamento, garantindo-se a quase totalidade do seu arrefecimento. Após estas fases, começa a tiragem do carvão, trabalho que só se faz de noite, para que algum pedacinho de carvão incandescente salte logo à vista e seja neutralizado, não vá ele queimar todo o carvão na ausência dos carvoeiros, depois de tanto trabalho e canseiras. A tiragem deste combustível começa, quase sempre, por volta das três ou quatro horas da manhã e prolonga-se até ao nascer do sol, altura em que os carvoeiros tomam o pequeno almoço. Depois, procedem ao desencalcamento do carvão já frio, fazendo, em seguida, a escolha e ensaque, tarefa que vai durar até às nove ou dez horas da noite. Ceiam. Refeição constituída, regra geral, por feijão frade com toucinho frito. Vão depois descançar quatro ou cinco horas sobre duas margens de charrua, que lhes servem de colchão, cobertas por algumas sacas vazias. Por cima não é necessário nada, porque quando o frio da madrugada os surpreende são horas de levantar e de recomeçar o trabalho.
Acabada esta tarefa, voltam pela última vez desse ano à terra natal. Magros, alquebrados por tanta canseira e sofrimento, sentindo ainda bem no seu corpo o vinco de rijas camas e a fadiga de tantas horas de trabalho fora do normal. Mas tudo esquece, em breve, àqueles homens duros como o ferro, mas de almas tão sensíveis. Basta apenas, a cada um deles, ao chegar a casa, as carícias da sua fiel companheira -que durante a sua ausência trabalhou em hortas e milharadas, ampliando o conchego do seu lar- e a presença de uma loitita criança que lhe vem bricar nos joelhos, fazendo-lhe inocentes perguntas, às quais o pai vai respondendo pacientemente. Numa ternura infantil, com os bracitos em volta do seu pescoço, o filho começa por contar-lhe as suas aventuras de criança e os castigos infligidos pela mãe como ‘prémio’ das suas diabruras. Por fim, esgota todo o seu repertório e diz ao pai : «quando te fores outra vez embora, eu também quero ir contigo». O pai estremece perante este pedido, mas diz-lhe : «sim, quando fores grande, também hás-de ir comigo fabricar carvão». O semblante, que ainda há pouco era alegre e sorridente, toldou-se num instante, como se o seu cérebro tivesse sido fulminado por um mau pensamento. Nas sua faces tisnadas pelo sol e pelo sofrimento deslizam duas lágrimas, que ele esconde àquele riso da inocência, tão longe de saber quanta dor, quantas lágrimas e quanto suor há no pão que o alimenta. Como se o seu íntimo tivesse estremecido ao contacto de um choque eléctrico, envolve o débil corpito num abraço paternal, como que para protegê-lo de um futuro que, geralmente, recai sobre noventa por cento dos filhos de carvoeiros, que é o de ser carvoeiro também.
(continua)
Manuel Monteiro Silva
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